AZAZEL E O DR.
Alessandro R. de M. Miranda
Alessandro R. de M. Miranda
Capítulo I
- Olá Dr. Simão Bacamarte, permita que eu me apresente,
Azazel, a seu inteiro dispor. Disse o homem de meia idade, traços marcantes,
voz altiva, com olhar penetrante e uma simpatia transbordante, estendendo a mão
para o Dr. e se postando impávido a sua frente.
- Por favor, entre, sente-se. Disse um Dr. Bacamarte
surpreso com a aparição repentina de Sr. tão distinto, abrindo inteiramente a
porta de seu consultório, mesmo próximo ao horário final de expediente na Casa
Verde.
Azazel parou
próximo à mesa, como que esperasse que o próprio Dr. Bacamarte se acomodasse em
sua poltrona. Este o fez sem delongas, ainda um tanto atônito, talvez pela
presença daquele homem que lhe instigava certa curiosidade, ou sabe-se lá por
quê.
Após algum
silêncio, preenchido pela presença de Azazel no consultório, que observava o
médico com atenção e com um leve sorriso, Dr. Simão Bacamarte pigarreou, se
aprumou na poltrona e disparou: - Pois bem, o que deseja?, o Dr., sempre tão
sereno, sentiu sua voz trêmula.
Azazel
aumentando o riso e se curvando em direção ao Dr., em cordial cumprimento disse
em tom brincalhão: - A princípio, chá.
Então Dr.
Simão Bacamarte parece que caiu em si, chacoalhou a cabeça, esfregou os olhos e
logo se levantou afoito: - Ora, onde estão meus modos?! Por favor, queira
sentar-se, acomode-se, vou pedir para nos trazerem um chá. Talvez não prefira
um café? O grão é da região, torrado há pouco.
- Um café então. Disse o homem, se ajeitando em uma
poltrona ao lado da mesinha de centro, de frente para o assento que o Dr. Simão
Bacamarte outrora ocupava, antes de seu acesso de lucidez.
Dr. Simão
agora pendurava o chapéu de seu convidado, a bengala ele preferiu não entregar;
e se apoiava com as mãos e o queixo sobre ela, sentado, observando Bacamarte se
desdobrar para pedir o melhor café para a criada e vir se alocar novamente na
poltrona.
Bacamarte, já
Senhor de si, olhou bem para a figura de Azazel e se deu conta de que nunca tinha
visto tal figura na pequena cidade de Itaguaí-RJ, onde ficava a Casa Verde, o
manicômio do qual o Dr. Simão era o idealizador, diretor, médico, pesquisador e
cientista.
Todavia, a
figura misteriosa foi logo dizendo, de forma compassada e harmoniosa: - Talvez
o Dr. esteja curioso de quem sou, pois tão somente o nome não fala muito da
pessoa, salvo daqueles ídolos, que vivem presos as suas figuras por amor à idolatria de outros. Mas esta não é a
natureza do meu jogo, lhe garanto. Venho ao Dr. por recomendação de D. João,
tio de um paciente que aqui está internado, Costa. Pois que conversando com
este tio, ele me disse que o Dr. tem teses bem distintas para tratamento de
surtos psicóticos, aos mentecaptos. Aí está o objetivo de minha visita:
gostaria de que Vossa Senhoria me honrasse com seu tratamento, pois há questões
que a muito me atormentam.
Dr.
Bacamarte, que escutava com atenção seu interlocutor assustou-se com batidas na
porta, ao que gritou instintivamente: - Entre!
- Dr., o café.
-
Ah, sim. Traga aqui, pode deixar que nos servimos. Como o Sr. prefere? Pois
não, forte e doce. Tome. Cuidado! Está quente.
-
Obrigado! Realmente, café de qualidade e a torra é nova, se sente pelo aroma.
-
E como ia dizendo, quais questões que lhe afligem Sr. Azazel?
-
Então concede-me a honra escutar minhas lamuriações?
-
Antes de tudo sou um homem da ciência e teria muito bom grado em ouvir-te, te
ajudar e também sanar minha curiosidade de qual será a questão que pesa tanto
sobre teus ombros.
Azazel,
olhou para Bacamarte, e um arrepio subiu pela espinha do Dr., gelou seus pés e
fez suar suas mãos, os tímpanos soavam conforme o hino do silêncio, que se
rompeu com a narrativa, do paciente:
-
Saiba que estou louco.
-
E o que te dá tanta certeza?
-
Justamente não ter sido louco, antes. Isto me dá certeza que agora estou louco,
este diagnóstico o Dr. pode ultrapassar, o que me assola são os motivos da
loucura e por isso eu vim.
-
Desculpe insistir, mas o que o Sr. chama de loucura, exatamente?
-
Não se incomode Dr., sua insistência é plenamente plausível. Só passo por esse
tema en passant por que a certeza da loucura já tenho, agora corro pela cura, e
esta só pode ser alcançada na causa da loucura.
- Então, qual seria a causa?
- O gigante que me assola é invisível. Tenho
o dever de listar o mau. Mas tal tarefa tem sido árdua e desgastante.
Inicialmente me colocava tempos inimagináveis a pensar acerca deste dever. Até
que passei a fugir de mim mesmo, dos meus pensamentos, enfrentar minha
consciência era batalha perdida e por isso não resistia mais a solidão,
procurei me absorver em trabalho e distrações. Até que um sonho me intrigou: a
morte seria o único remédio para o dever, mas até mesmo na agonia nos dizem
para conservar a vida.
O
Dr. ia tomando nota mental de tudo, realmente um paciente intrigante, pensava,
tinha de ser estudado.
- Além disso, meu caro Dr., quem
poderia definir quais as fronteiras do bom e do mau, e, ainda, seus critérios
de julgamento. Será que isto existe, de formas distintas? – os atos não são direitos
ou não a priori, mas a posteriori. Bom e mau são aplicados com um critério de
ação e tomando sempre como ponto de referência uma experiência pessoal. Ora o
julgamento de cada ação é algo individual, subjetivo, não há sentença justa
dada por terceiro. A evolução humana não chegará a um consenso universal do que
é o melhor ou pior. - Está me acompanhando Dr.? – Veja algumas insurreições,
são ovacionadas por seus progressos humanos, apesar das execuções e histórias
macabras que as perseguem, quantas revoluções são manchadas com sangue! E,
ainda, até onde vai a liberdade do indivíduo em suas escolhas? Qual a
consciência que temos de bom e mau? O critério é o resultado ou a intenção? Ou,
no final, vale como a história for
contada e por quem?
-
Sr. Azazel, acredito que o café tenha feito efeito, o Sr. está um tanto quanto
agitado, acalme-se.
-
Perdão Dr. Bacamarte, se me excedi no tom, mas realmente este assunto é
justamente o que me levou à loucura.
-
Sabe Sr. Azazel, não são raros os filósofos que assumiram graus de consciência
distintas dos demais, mas nem por isso eles eram loucos propriamente ditos,
apesar de alguns terem sido condenados com esta alegação.
-
Entendo Dr., mas a minha loucura não advém tão somente das questões
filosóficas, que indelicadamente eu descarreguei sem maiores cerimônias. Mereço
ser internado nesta Casa pois não resisto a pressão e estou para abandonar o
dever. Assim sofrerei ser destituído do meu escalão, rebaixado à terra.
-
O Sr. então passa por um período de estresse, com seu superior nos calcanhares,
além das questões filosóficas que lhe atormentam a mente e por isso se julga
louco, ou a beira da loucura. Até o momento não vejo motivo para interná-lo,
nem tenho certeza de sua loucura. Talvez uma droga para ansiedade, o boticário
é próximo a mim, lhe dará a dose por mim indicada, na medida. O Sr. tem dormido
bem?
O
Dr. já foi pegando seu receituário e esperava passar algo para acalmar os
ânimos do paciente, que apesar de não parecer louco tinha lá suas esquisitices.
A pouco resmungou que o boticário poderia não ser tão próximo, mas como ele
haveria de saber? E Simão se concentrou no receituário e deixou a questão pra
lá, não quis amolar o paciente com sua curiosidade.
O
psiquiatra resolveu entregar a receita à Azazel, disse que outras recomendações
seriam dadas pelo boticário e que voltasse no dia seguinte, ao entardecer, já
que gostaria de consultar o paciente novamente.
O
paciente já com chapéu na mão cumprimentou o Dr., agradeceu a cordialidade e
confirmou que viria sem falta na próxima consulta, fixando os olhos nas
olheiras do médico e percebendo que já haviam se passado horas desde que
iniciaram a conversa.
Capítulo II
Apesar
do cansaço o Dr. Simão Bacamarte não deixou de dar algumas recomendações aos enfermeiros
da Casa Verde, naquela noite que atendera até tarde o Sr. Azazel. Pediu que
investigassem aquele misterioso paciente, homem tão letrado devia ter recebido
instrução no estrangeiro, com certeza, seria um homem de posses e bom gosto,
seria fácil assuntar sua vida com seus criados. Devia estar hospedado no hotel
da cidade, construído em razão dos parentes dos mentecapitos de cidades
vizinhas quererem visitar seus entes e o manicômio não permitir o pouso de
visitas.
Todavia,
a única informação que os criados do Dr. Simão Bacamarte conseguiram foi a de
que o Sr. Azazel estava com um pequeno grupo, mas que ficaram ao longe,
aguardando a consulta terminar e que ao se reunirem, dobraram a esquina e
simplesmente desapareceram. No hotel não havia qualquer registro de Azazel e
ninguém sabia dizer de onde vinha aquele Sr. A única informação que o Dr.
obteve foi sua própria impressão, de que o Sr. Azazel era um homem simpático,
misterioso e que seu caso era de fato intrigante: não é todo dia que um
paciente aparece querendo ser internado, alegando ser louco. A loucura age de
forma vil, o último a saber o seu estado é o enfermo.
O
Dr. passara a noite em claro, pensando nas questões ventiladas por Azazel. Qual
afinal era a fronteira do bem e do mal? Perguntava para sua mulher, que olhava
atônita, no meio da noite, um Simão Bacamarte suado, agitado, que gesticulava,
- o que importa é o resultado da ação ou a intenção desta?, levantava da cama,
- que diabos! também pudera um homem enlouquecer com tais questões.
O
dia amanheceu com o Dr. sentado em sua varanda, pensativo, com um café já frio
na mão e uma nesga de queijo na outra, olhando o horizonte, ruminando: algumas
ações transcendem o bem e o mal; matar é algo hediondo; mesmo se a vítima for
um tirano?; mesmo que para salvar centenas, milhares de outras vidas?; o que é
certo hoje já foi horrendo outrora; seria o certo e o errado algo efêmero e
temporal?; se não sabemos sequer o que é certo e errado, o que esperar, qual o
usual, o normal? como dizer que somos livres, que nos governamos, se não
conseguimos fazer um plano sequer para amanhã, pois não sabemos ao certo se estaremos aqui?; qual
oráculo poderá prever como julgarão nossas ações no futuro? Os franceses bem
diferenciam insurreição de revolta, com palavras a coisa é mais simples e ainda
assim questão complexa.
E
estas questões iam se apoderando do espírito do Dr., que vasculhava sua mente,
tudo que havia aprendido, todos os métodos científicos e nada respondia a
contento. O café continuava na xícara, e o queijo tinha sido esquecido, o Dr.
estava perdido em seus pensamentos.
Afinal,
que profissão é essa de listar o mau? Um promotor? Sim, com certeza seria esta
a função do paciente – pensava o Dr. – listar as ações ruins dos homens e
oferecer denúncia contra eles.
E
quais as distrações que conseguiram aliviar o paciente de seu dever? Qual o
trabalho que lhe fez desligar-se de sua própria consciência? O dia ia passando
e as questões atormentavam cada vez mais o Dr. Simão Bacamarte, que se sentia
esgotado.
Capítulo III
Próximo
ao horário da consulta do Sr. Azazel o Dr. Bacamarte já estava ansioso,
repassava cada detalhe do encontro passado em sua mente e uma angústia crescia
dentro dele.
Batidas
na porta chamaram a atenção do Dr. Simão, que encontrou Azazel a porta, muito
bem vestido e com a mesma cordialidade de outrora, nada que demonstrasse o peso
dos questionamentos que dizia carregar e já se faziam sentir no Dr. Bacamarte.
Após
os cumprimentos iniciais os dois se sentaram de frente, nas poltronas confortáveis
do consultório principal da Casa Verde, ocupada desde sua conclusão pelo Dr.
Simão.
- Dr. Simão Bacamarte, alienista de
renome, parece abatido! Espero não terem sido minhas questões que lhe
atormentaram o sono. Falou Azazel, com voz afável.
-
Não nego, Sr. Azazel, que seus questionamentos me intrigaram bastante e que
fiquei a pensar neles algum tempo. O Dr. não quis revelar seu calvário durante
noite e dia, pensando no encontro anterior que tivera com seu interlocutor.
Azazel
não deu atenção a explicação do Dr., como se este fosse um tormento já superado
e continuou, com um certo prazer: - Talvez o Dr. queira desistir de nossas
sessões?
- Não, de forma alguma, o seu caso me
instiga. Só não digeri ainda a sua sofreguidão diante da dualidade do bem e do
mal. Esclareceu o Dr., e continuou: - O bem e o mal se confundem. O dualismo
nem sempre tem seus opostos definidos com clareza e o indivíduo muitas vezes se
contrapõem a este cisma, entre certo e errado.
-
Sim, é isto! Concordou Azazel, de pronto. E imagine o Dr. eu ter de trabalhar
com tão árduas questões, durante todo tempo. Minha incumbência de levantar as
faltas é deveras desgastante, mas sempre a fiz com virtude. Ocorre que se o
dualismo realmente não é inteiramente verdadeiro, todo o meu labor está
incorreto, foi em vão. Pior! Fiz sofrer almas que não mereciam. E, agora, me
veem com essa: sua função é esta, faça ou será decaído, sua função será
substituída. Ora, quem eles pensam que são?! Digo eles por que há um complô,
cochicham as minhas costas, sinto os olhares, os ventos me trazem os sussurros.
Eles não entendem que não há nada bem definido, que os problemas são muitos.
Acredito até que o melhor mesmo seria descentralizar tudo, como fora antes. Mas
não! Preferem inundar tudo a concordarem comigo. E se não estou certo, que se
abra o debate.
-
Pelo que entendi o Sr. é servidor público, promotor ou procurador talvez?
assuntou Dr. Simão Bacamarte.
-
Público?! De público aquilo não tem nada! É tudo privado, particular. E não
para por aí, a coisa toda funciona pela vontade de um só. Veja que disparate! É
claro que o Dr. concorda comigo, o indivíduo só pode governar a si próprio, não
é?
-
E a escravidão? Apesar desta forma de trabalho estar no fim, com o movimento
abolicionista tomando corpo, é uma forma de governar o outro. Não? Indagou o
Dr. Bacamarte, que se deixara levar pelos delírios do paciente.
- Não falo do governo do corpo, Dr.
Bacamarte, falo da alma. A alma humana é voluptuosa, densa, irascível, mas
também facilmente escravizada. E como elencar os atos de uma alma escrava e
ainda por cima qualificar tais ações em dois polos distintos, bom e mau?
Conceito que se altera do dia para a noite. Me responda Dr. estas questões e
assim me cure, ou me interne de uma vez, chame o boticário, faça sua mágica,
estou louco, não quero mais o tormento deste pensar.
-
Sobre essa questão da loucura, Sr. Azazel, veja, minha doutrina psiquiátrica é
a seguinte: Divido os mentecaptos em duas classes principais: os furiosos e os
mansos; daí passo às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.
Assim, apesar do seu pensamento complexo o Sr. não parece apresentar traços
desta doença, podemos classificar seus padrões como normais.
Após
o Dr. Bacamarte revelar seu diagnóstico, olhou bem para o Sr. Azazel, que
sorrindo levemente levantou-se, andou pelo consultório e parou próxima a
janela. O Dr. Bacamarte aproximou-se e os dois passaram a observar os
transeuntes da cidade de Itaguaí-RJ. A noite já caia e podia-se ver aqueles
cidadãos que voltavam da missa e também os que se dirigiam aos bailes. Então o
Sr. Azazel disse sem tirar os olhos da rua:
-
E o Dr. poderia me informar quais são os padrões normais? Quem os estabelece e
por qual razão?
O
Dr. Bacamarte começou a balbuciar algo, como se querendo fundamentar seu
diagnóstico prematuro, mas nada lhe veio a mente, a imagem do Sr. Azazel, ao
seu lado, de alguma forma lhe causava um certo entorpecimento.
Azazel
continuou:
-
Permita-me, então, ilustrar nosso diálogo com um exemplo do que eu ia dizendo
anteriormente. O caso me chamou atenção e me deu um trabalhão danado. Ouça:
-
Caim, o primeiro filho nascido de Adão e Eva, também o primeiro assassino da
humanidade.
O
Dr. Bacamarte fez menção de interromper, mas resolveu deixar o Sr. Azazel
terminar sua narrativa.
-
Caim, que mata seu irmão pois não aguenta a injustiça divina, de ver rejeitada,
pelo Senhor, sua oferenda, em detrimento daquela de seu irmão. Caim mata seu caçula
por motivo vil, inveja. Por seu crime é marcado e condenado a andar pelo mundo, testemunhando
atrocidades contra o ser humano: Uma tribo resolve cultuar o bezerro dourado
enquanto esperam pela revelação divina? Que os matem. As tribos desafiam Josué?
Que coisas estranhíssimas ocorram e todo mundo morra para facilitar as coisas.
Sodoma maltrata os visitantes angelicais? Que todos ardam em chamas, as
crianças que nada fizeram inclusas.
–
Estou divagando um pouco, me desculpe, onde eu estava? Ah sim, Caim! Dizia
Azazel retornando teatralmente à história, com grande empolgação: Este rapaz me
deu um trabalho desgraçado. Tudo bem, ele matou o irmão. Mas foi tudo armação,
a intenção dele nunca foi esta, só estava perdido, desejoso de ser o mais amado
por seu Senhor. Logo, ele não estava em suas faculdades mentais perfeitas, era
um escravo do seu Senhor. Mas a intenção não foi levada em conta. Importou o
resultado: a morte! E por isso deveria ser condenado. Eu deveria acusá-lo e
requerer sua condenação. Mas que pena pedir? Era o primeiro caso de assassinato
que tínhamos. Só por aí já tivemos que partir de uma premissa, que Caim sabia
que matar era errado. Também deveria saber que seria punido, mesmo sequer
podendo imaginar sua pena. Mais tarde percebemos que vocês não entendem bem o
que pode e o que não pode, então mandamos um emissário com 10 mandamentos
básicos e outros ensinamentos, mas o rapaz não durou muito. Enfim, Caim foi uma
dor de cabeça daquelas, não estávamos preparados. Acredito até que a pena foi
excessiva. E o pior que eu já sei que logo virá um Português espalhar esta
história; mas o que queriam!? As coisas estavam no começo, as engrenagens ainda
não estavam azeitadas.
- Pare lá! O Sr. está me dizendo que...
Então Dr. Simão Bacamarte se calou, viu que tinha se deixado levar pelos
questionamentos do próprio paciente e não lhe dera ouvidos, pelo visto
realmente havia traços de loucura. O Dr. Bacamarte se martirizava, nunca tinha
dado um diagnóstico errado. Agora teria que voltar atrás, concordar com o Sr.
Azazel, dizer que ele realmente era louco, chamar os enfermeiros, meter o
enfermo na camisa de força, entrouxar trapos em sua boca, não, o paciente não
era violento, muito pelo contrário, um amável senhor, mas e se ele contasse o
erro do já famoso Dr. Simão Bacamarte? E se todos soubessem que errou de forma
crassa? O Dr. Simão, atônito, se perguntava. Por que não esperei para dar o
diagnóstico? O paciente parecia muito bem, agora que vêm com esta conversa, de
Caim, que estava lá, e esse tal emissário só poderia ser...
-
O Dr. está passando bem? perguntou cordialmente Sr. Azazel, já puxando uma
cadeira para o Dr. Bacamarte, que estava pálido, com os olhos arregalados,
petrificado.
-
Não posso dizer que me canso deste olhar. E retomou Azazel: - Muito me espanta
o Dr., com tais pensamentos! Pensei que seus princípios fossem mais nobres. E
se só pensa desta forma por pavor da opinião pública, não deixe de me escutar,
como fez anteriormente e agora se arrepende. Estou louco, não sou mentiroso.
Minha história é totalmente plausível e aceitável. É bem verdade que alguns
trabalhos podem enlouquecer. Lembre-se de Pôncio Pilatos, um julgamento muito
mais fácil que o de Caim, aquele de Jesus, e o velho pirou, caiu em parafuso,
julgou mal e até hoje sofre o expurgo da opinião pública.
-
Mas o Sr. afirma que é o Diabo?!
- Há certa confusão quanto a isso,
também tenho primos e camaradas. Existe alguma hierarquia na coisa toda. Um
navio com leme, vela e tosse, por assim dizer. Antes minha patente era
distinta, a dos colegas também; trocaram administrativamente de todo o
departamento; parece que um tal de Miguel assumiu tudo por ter uma visão mais
ajustada com as ordens superiores. Já lhe disse que o nome fala pouco do ser.
Mas prefiro Azazel, se não se importa. E o Dr. também com essa coisa de
dualismo?! Ou louco ou o diabo. Por que não os dois? E se lhe causo algum
temor: Vá reclamar com o vigário! Pois de minha educação acredito que o Dr. não
possa se queixar.
-
Sim! Digo, não! Sempre muito educado, é verdade.
-
Então deixe de tolices homem, respire, tome um gole disto, vai restabelece-lo.
Dr.
Bacamarte, atordoado, tomou o líquido que lhe desceu como pinga e lhe impregnou
de altivez. Mais uma vez teve medo de chamar seus auxiliares e descobrirem que
tinha errado, o medo das revelações do paciente não existiam.
Vendo
que o Dr. Bacamarte se recompusera, Azazel continuou:
- Também o Dr. não pode dizer que
minhas acusações são injustas. Pode afirmar até que as tentações são muitas,
que estou em vantagem, que o pecado é fácil de cometer. Eu mesmo não resisto a
alguns, o que vêm me trazendo alguns tormentos e tantas alegrias. Aí vou
concordar, mas lembra-lo que não fui eu que construí o sistema todo. Só cumpro
ordens, algumas do jeito é verdade. Estas inclusive que estão a me enlouquecer,
pois como já disse as diretrizes não são claras e com poucas reclamações já
querem me derrubar, me tirar as janelas e ignorar meu conhecimento. Talvez eu
mesmo desça. Há tempos venho preferindo os de cá.
Capítulo IV
Dr.
Bacamarte se sentia perdido, como se caindo em um abismo, tonto, atordoado, não
sabia mais se por causa da vergonha de seu erro, nem sabia mais se estava
errado, talvez a bebida tenha o deixado diferente, quem era aquele na sua
frente, Azazel, já ouvira esse nome. E as indagações desse cavalheiro? Se a
dualidade não fosse verdade suas teorias estariam acabadas, todos os loucos
deveriam ser soltos imediatamente. Mais essa!
Azazel
notando o estado do Dr. Simão Bacamarte soltou uma gargalhada e já foi falando:
-
Mais uma vez nos estendemos no diálogo Dr. Bacamarte, me perdoe tomar tanto de
seu tempo. Vou deixa-lo. Até me sinto melhor agora que desabafei. Talvez o Dr.
estivesse mesmo certo, não há loucura, apenas algumas perturbações. Ou o Dr.
tenha me curado, o que acha? Azazel já estava com seus pertences, a porta por trás
dele se abriu, ele fez uma reverência afetada, virou nos calcanhares, bengala
embaixo do braço, passo firme, sem dúvida um homem elegante.
Dr.
Simão foi despertando de seus pensamentos, chegando ao fim de sua queda, já com
o fechar de portas de seu consultório e saída inesperada de seu paciente. Mas
se estava curado não era mais paciente. Estava louco? O alienista ainda se
perdia em seus pensamentos e sequer conseguiu se levantar da cadeira, apesar de
querer resistir à saída de Azazel.
O
Dr. Bacamarte vai para a casa exausto, já tarde e se enclausura em seu
escritório particular. Mal sabia ele que aquela era a noite da rebelião de
Itaguaí, contra a Casa Verde e o alienista, liderado por um tal Porfírio. Como
não enlouquecer!?
Fim.
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